Como o meio digital possibilitou desertos jornalísticos
date
Oct 31, 2016
slug
como-o-meio-digital-possibilitou-desertos-jornalisticos
status
Published
tags
desertos jornalísticos
meio digital
concentração de poder
jornais locais
Estados Unidos
summary
O declínio dos jornais locais nos EUA: a devastação dos "desertos noticiosos" e o impacto da concentração de poder na mídia
type
Post
É uma história que, se você for brasileiro, já conhece: cidade média, até com certo poder aquisitivo, tem um jornal pequeno (raramente mais de um), semiprofissional e que tem relacionamento próximo com as elites política e financeira locais. O resultado dessa equação, um jornalismo deficiente e alinhado com o poder local, criava grandes "desertos' noticiosos, largas faixas de território onde a cobertura local era restrita e só a TV se impunha como fonte de informação. Uma combinação da evolução tecnológica e de costumes e uma recessão foram suficientes para os EUA também conhecerem a "desertificação". Hoje é mais fácil saber o que acontece do outro lado do mundo do que na sua rua e não há uma solução em vista.
O novo equilíbrio das forças e valores do consumo de mídia está devastando o que ainda resta do modelo tradicional que mantinha um ou mais jornais diários em cidades pequenas ou médias nos EUA criando o que o jornalista Tom Stites, do Banyan Project, chamou de News Deserts - trechos de território nos quais a cobertura local cai a quantidades tão baixas quanto zero. O verbo acima ainda não está no passado - a devastação ainda não acabou. Ela vai continuar aumentando, inclemente, até que uma saída tecnológica abra uma porta ou que as empresas se esqueçam de como ganhavam dinheiro e reformatem seus modelos de negócio em função de como o cenário é e não como ele foi um dia. Sem se dar conta do que fazer, a terra arrasada é só uma questão de tempo.
De 2004 para cá, o país perdeu mais de 600 jornais, enquanto quantidade similar deixou de operar diariamente, adotando periodicidades que variam do bissemanal ao mensal. É irônico que a concentração de poder em dois setores fundamentais da identidade americana - sistema bancário e mídia - seja o epicentro da crise socio-econômica da maior democracia capitalista do planeta. 10 bancos detém 80% do sistema bancário no país e o número de proprietários de jornais no país diminui rapidamente.
Mais de mil saíram do mercado de 2004 para cá - uma média de 8 por mês entre 2004 e 2014. A circulação caiu em quase 25 milhões de leitores diários, os 25 maiores grupos que detém a propriedade de jornais têm mais de 2 mil títulos e boa parte desses proprietários não são mais empresas jornalísticas, mas fundos de investimento que compram jornais em situação precária e fazem demissões, corte de todo tipo e/ou fecham títulos para extrair o maior lucro possível. Entender o fenômeno Trump com esse pano de fundo é bem mais fácil.
O Brasil não chegou a ter o problema nessa magnitude por conta da história sobre a qual a indústria se desenvolveu no país. O primeiro jornal do Brasil foi um jornal do governo e ao longo da história, nenhuma empresa não alinhada com o Estado conseguiu sobreviver mais de uma década com alguma relevância. Altas taxas de analfabetismo, acesso a crédito limitado e uma longa lista de governos com vocação autoritária ou ditaduras explícitas fizeram o resto.
Mesmo em cidades com algumas centenas de milhares de habitantes, não havia uma quantidade de jornais que permitisse um ecossistema saudável. Vivemos num deserto de notícias desde sempre. O status quo no Brasil sempre quis manter umas poucas fontes de informação, facilmente cooptáveis.
O começo do fim
A história americana é diametralmente oposta. Nos Estados Unidos, cidades tão pequenas quanto Tarboro, na Carolina do Norte, que tem cerca de 11 mil pessoas, tinham um ou mais jornais. Tarboro, no caso, viu o diário local, um título que tinha 188 anos, fechar as portas. Jornais locais têm uma importante função numa sociedade em que o Estado se submete à lei. Ainda que o governo tenha uma vocação para o autoritarismo por conta da sua própria natureza, sociedades como a americana ainda obedecem à ordem institucional. O jornalismo local age como um "zelador da sociedade", numa expressão do polêmico jornalista Carlos Lacerda.
A "desertificação" americana é o sintoma do desmonte de uma sociedade saudável. Ideologias e política externa à parte, no século XX, o país teve uma gradativa distribuição de poder e renda para a sociedade como um todo. A partir do final da década de 70, o movimento começou a se inverter. O acúmulo de riqueza e poder por parte das corporações multinacionais começou a minar as fundações dessa sociedade - o americano médio. Wall Street ganhou mais e mais espaço no governo e financiou a desregulamentação que causou a crise de 2008 e em última instância, criou os mega-fundos e instituições que estão jantando o ecossistema jornalístico do país.
Por mais egocêntrico que fossem, as empresas de informação tinham uma compreensão de como funcionava o seu nicho. Corporações alienígenas à indústria tomam decisões na ponta do lápis, cortando custos, demitindo e fechando tudo o que for preciso para entregar o maior valor para os acionistas, independentemente de quanto caos aquilo possa gerar nas comunidades vítimas desses cortes.
O futuro
Parte da solução desse problema virá de um modo muito traumático. Uma geração de empreendedores tem de ser sepultada - como o jornal de Tarboro - para que surja uma outra em seu lugar. A compreensão do negócio não tem de ser adaptada - ela precisa ser refeita. Alguns jornais americanos, como o Texas Tribune, têm desenvolvido fontes de receita que não são mais baseadas na lógica de visibilidade de classificados/banners.
Organização de eventos, substituição de assinaturas por filiações, produção de conteúdo para clientes externos (leia-se, anunciantes e/ou outras empresas) parecem ter mais fôlego que o desenho tradicional. Isso, contudo, não é suficiente para evitar a desertificação nem recuperar o terreno perdido - ainda. Não dá para saber se o processo vai levar mais ou menos tempo para ser revertido nem o tamanho do dano a ser reparado. Essa medida é que vai determinar o tamanho do trauma e, sim, ele pode ser bem grande.