Mídia esportiva: a crônica de uma morte anunciada
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Dec 24, 2024
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mídia
esportiva
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Depois de décadas de lenta agonia, a mídia esportiva se prepara para a câmara ardente que fica cada vez mais próxima.
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O que é uma revolução? É a transferência de poder de uma elite para outra, com o sacrifício de vastas quantidades de ingênuos inocentes no processo. O desmonte da indústria de mídia esportiva nas últimas duas décadas se encaixa com a descrição. Os monopólios de distribuição da mídia tradicional foram derretidos pelo digital. O modelo de grupos de jornalistas profissionais produzindo conteúdo não é mais viável. É seguro afirmar que a mídia esportiva morreu. Seu túmulo jamais será encontrado, tendo sido substituída pelo imenso deserto intelectual dos “influenciadores”, abutres da atenção anabolizados por algoritmos criados para vendas, que não têm preocupação nenhuma com ninguém além do seu número de seguidores. O que vai acontecer agora? Eis uma thread com uma página só.
Vamos começar definindo que o diferencial auto-concedido pela própria imprensa esportiva no decorrer dessas duas décadas de apodrecimento digital. A “qualidade” não existe, e na verdade nunca existiu. O conteúdo que formava opiniões porque era consistente o suficiente para gerar interesse sempre veio de indivíduos, nunca dos meios. Essa regra se aplica a toda a mídia brasileira, e seus bordões de auto-adoração como “jornalismo é nosso esporte”, “época de ouro da Placar” e “é melhor você começar a ler o Estadão” só sobreviveram enquanto essas empresas dispunham de uma vantagem competitiva injusta na distribuição ou a permissão de perder dinheiro no seio de uma empresa-mãe com recursos de outro lugar. Uma vez que máquinas de distribuição injustas mais eficientes surgiram (leia-se Google, Meta e Twitter), a “qualidade” derreteu como um sorvete no deserto. O puxassaquismo corporativo que manteve a preponderância dos “medalhões” da mídia era uma lenda urbana que se sustentava porque ninguém pagava para ver. Os cadáveres da mídia tradicional que viviam de feudos conquistados por pistolões estão aí para provar isso. Só estão no mercado os antigos profissionais com um brand individual que ainda garante atenção nas plataformas digitais ou por conta de outro tipo de rede - as redes de contatos bem-posicionados. O resto vive de receitas fragmentadas, mudou de profissão ou observa a legião de produtores de conteúdo severamente limitados intelectuais com saudade de um passado que não voltará.
Duas observações: a primeira é que o jornalismo esportivo implodiu pela razão óbvia - ele era irrelevante. Comentar o resultado do jogo do dia (que era o filé da maioria esmagadora dos jornalistas) era perfeitamente substituível pela opinião de qualquer pessoa, hoje representadas pelos “influenciadores”. Redações de TV e rádio raramente viam os medalhões ralando a bunda levantando informação e os debates públicos eram um festival de achismos. Não por acaso, sobreviventes extraordinários como Paulo Vinicius Coelho, um workaholic que não consegu(e)ia parar de trabalhar, destoava no meio da fauna de jornalistas de gerações anteriores que viam suas opiniões pessoais como ouro em pó. Ou seja: esse jornalismo nunca foi de qualidade. Sobrevivia por pistolões - um canal a cabo vivendo deficitária do budget de uma multinacional, publicações impressas que tinham o monopólio da distribuição ou operações de TV custeadas por apoio político. Essas figuras hoje se queixam do digital como se tratasse de uma qualidade menor (o que é verdade em certo ponto, porque ao menos era uma classe alfabetizada que não seguia o próprio “extinto” nem valorizava o “dibre”).
A segunda observação é a indústria esportiva em si também não passa de um produtor de conteúdo que, por especificidades ainda imbatíveis (como consumidores que estão eternamente atados aos seus clubes), segue dando as cartas. O futebol não é uma caixinha de surpresas, mas apenas mais uma indústria que vive de um monopólio (porque só o Flamengo pode ser Flamengo - por enquanto). Quando se vê o problema em outra perspectiva, se percebe que a economia do ecossistema gravita ao redor do monopolista da vez. Antes eram clubes, federações num nível e mídia tradicional num nível acima. O primeiro layer continua (ainda que com endividamento que garantiria falência generalizada em qualquer outra indústria); o segundo foi dizimado e substituído por desconhecidos randômicos e por amigos de patrocinadores (que ainda sobrevivem enquanto as amizades com orçamentos de peso durarem).
O processo de corrosão molecular da mídia esportiva é irreversível. A oferta de conteúdo é infinita, logo, o preço será sempre zero (não é “baixo”, é zero). Estamos a uma, duas ou mais gerações de distância de uma solução técnica que consiga passar um rodo nos atuais monopólios digitais californianos ou chineses. Até que isso aconteça, o processo de análise do conteúdo feito pelos clubes seguirá sem receita possível fora do circulo das extraordinariedades, como jornais subvencionados por mecenas (The Guardian), vivendo de capital público (BBC) ou receitas incompreensíveis que se sustentam por uma cadeia de interesses única (como o Esporte Interativo, a nêmese da “qualidade”, ou a Cazé TV, dois modelos de negócio que só os investidores realmente conhecem).
Não se trata de um processo brasileiro. A Gazzetta Dello Sport, possivelmente o melhor jornalismo esportivo do mundo duas décadas atrás é uma sombra do passado. Numa redação estrangulada, formada por jovens com experiência quase nula, as atuais pautas são ditadas por entrevistas de ídolos do futebol italiano com “influenciadores” de algum canal digital, fotos ou comentários dos personagens nas redes sociais ou eventos cobertos por ordem se seu “patrono” (que também é dono do Torino). A Gazzetta tem pouco mais de 10% do número de assinantes de seu auge e o faturamento o seu site impede uma cobertura similar à que ela já teve. É um jornal que sobrevive deu sua marca e dos interesses que a cercam. Como negócio, está morta (assim como pólo de produção de qualidade - neste caso, sem aspas, porque a qualidade era palpável). A mídia esportiva tradicional dos dois lados do Atlântico segue pelo mesmo caminho. Não é uma crise na indústria, é uma alteração sistêmica irreversível. Prever os prazos de duração dela é achismo. Enquanto elas mantiverem a vantagem competitiva, seguem adiante - seja por seis meses ou duzentos séculos.
Provavelmente a comparação dos clubes com fornecedores de conteúdo desoriente um pouco aqueles que não se deram conta da constatação, mas como mercado, é exatamente isso. Os clubes têm uma vantagem competitiva que é a de que seus torcedores não conseguem se livrar da sentença de torcer para um time só (como os botafoguenses até poucos meses atrás, os vascaínos agora, e quem sabe quais outros clubes no futuro). Essa vantagem não é eterna, contudo. O crescimento do interesse dos brasileiros pelo futebol inglês, alemão ou espanhol nos últimos 20 anos vem na esteira da digitalização mas a globalização de superligas vai criar monopólios inimagináveis e desestruturar todo o resto (esse será o grande impasse da próxima década, que se encerrará com uma Copa do Mundo feita num país cujo recorde de direitos humanos faz a Rússia parecer um jardim da infância. Os clubes brasileiros ainda têm seu futuro em suas mãos, mas o sistema todo precisa ficar viável. A falácia dos “12 grandes” contudo, só permanece na cabeça dos Pachecos (ue são extremamente difíceis de eliminar).
Para onde nós vamos agora? A cobertura atingiu seu pico em termos de quantidade (há milhares de vezes mais conteúdo disponível do que pessoas vivas para vê-lo). Criadores de polêmica têm uma vantagem competitiva, porque desde a época do coliseu em Roma que sangue e lágrimas atraem mais do que qualquer outra coisa. A receita está trancada nas plataformas indefinidamente (os produtores de conteúdo não passam de funcionários terceirizados, comensais nadando embaixo do tubarão para pegar suas sobras). Jornalismo informacional acabou. É caro demais para produzir e praticamente irrelevante para uma audiência com déficit de atenção severo e irreversível. O único elemento vindo da mídia tradicional que sobreviveu ao massacre é justamente o mais inútil: as “mesas redondas” onde o bate-boca é obrigatório, e também o mais fácil de se reproduzir (um único bar pode ter dezenas delas). Em uma frase: para levantar de seu túmulo, a mídia esportiva precisa suplantar o controle de distribuição (algo impossível de se fazer individualmente) e voltar a ser relevante (impossível no mundo da atenção limitada e finita). Um milagre? Não - precisa ser algo muito, mas muito mais impactante que isso.