Mídia digital tem mais conexão com interesse público do que mídias tradicionais

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Jun 4, 2012
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interesse público
mídia digital
conexão
mídias tradicionais
prestação de contas
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Mídia digital tem mais conexão com interesse público e oferece maior prestação de contas do que mídias tradicionais.
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Post
Um dos termos de uso frequente mais difíceis de se estabelecer é "interesse público". A dificuldade é porque, a própria definição da palavra é complexa (curiosamente, ou não, "interesse público" é um dos poucos termos para os quais a Wikipedia não tem um verbete em português). Em última análise, o interesse público é o benefício da maioria das pessoas, mas que pode estar em conflito com outros direitos igualmente fundamentais, como o direito à privacidade ou direito de expressão, por exemplo.  Daí, a pergunta: como definir o que é interesse público para os órgãos de mídia? A dificuldade da tarefa não é menor que sua importância. Ainda que traçar linhas numa questão tão delicada seja quase impossível, é daí que sai o verdadeiro guia do funcionamento da mídia, muito mais do que a "imparcialidade" (porque esta, sim, é uma aspiração impossível). E seja ele qual for, no que diz respeito a discutir o interesse público, a mídia digital tem mais recursos do a imprensa tradicional.
A observação de que a mídia digital tem mais recursos do que a tradicional para discutir o interesse público e prestar contas de sua própria atuação merece uma pequena digressão. O fato de ter mais ferramentas disponíveis para o debate público não quer dizer que o digital tenha  mais conexão com o interesse público. A tecnologia em si não é ruim nem boa, nem é neutra. A relação aqui proposta entre interesse público e mídias digitais é que ela tem maior possibilidades de prestar contas sobre si mesma do que as mídias tradicionais.
McQuail lista oito condições para estabelecer a extensão na qual uma mídia trabalha pelo interesse público que são: liberdade de publicação, pluralidade na propriedade da mídia, diversidade de informação opinião e cultura, apoio à ordem pública, alcance extenso, qualidade da informação e cultura disponível ao público, apoio ao bom funcionamento do sistema político (aqui, outra digressão: supondo-se que o sistema político em questão representeos indivíduos daquela sociedade) e promova o respeito aos direitos do indivíduo e aos direitos humanos. Não vou me alongar discutindo os oito pontos um a um, mas basta alguma reflexão para se dar conta que a mídia tradicional não passa nem perto da maioria deles (como por exemplo, pluralidade na propriedade dos meios de comunicação).
A primeira digressão é chamada em causa neste ponto. Um crítico da mídia digital pode aqui lembrar que nem todos os pontos apenas citados estão presentes no ambiente virtual. Por exemplo, ferramentas digitais ajudaram a organizar os distúrbios em Londres em 2011; na Internet, a quantidade de informação e cultura disponível nem sempre é aceitável e também na Internet é possível encontrar publicações que não respeitam os direitos fundamentais do indivíduo. Tudo isso é verdade, mas a máxima segue verdadeira. Somente e tão somente a mídia digital pode abarcar os oito pontos sugeridos por McQuail, ainda que não o faça ainda, por uma série de razões. Além disso, o digital levou a bidirecionaliade do discurso mediático a um nível completamente novo, inimaginável para a mídia antes de sua criação. Inerente à atividade da mídia digital está o fato de que o receptor deixou de ser receptor, ou como bem formatou Jay Rosen, o receptor agora faz parte do grupo de pessoas que um dia conhecemos por público. (Aqui você pode ler uma excelente matéria da Economist sobre o assunto.)
Não existe mais um início nem um final para o discurso mediático e somente a introdução das ferramentas digitais poderia ter levado a tanto. O open journalism (cuja tradução mais próxima em português é "jornalismo cidadão") levou o leitor/usuário para o meio do discurso e impôs um acompanhamento muito mais próximo, obrigando a mídia a prestar contas com muito mais rapidez. Coberturas tendenciosas e erros de reportagem recebem uma cobrança muito maior agora do que antes da digitalização da mídia. Num excelente exemplo de desenvolvimento do open journalism aos seus limites, o diário britânico Guardian adotou uma política que coloca a publicação digital com prioridade e dá ênfase à participação do leitor. Um vídeo promocional do jornal com os três porquinhos matando o lobo se viralizou na Internet (veja abaixo).
Infelizmente, a defesa do interesse público não depende só da garantia de liberdade dada à mídia de uma determinada sociedade. Em seu àpice, a imprensa agindo com toda a liberdade e suporte possível simplesmente passa a responsabilidade para a sociedade decidir as questões cruciais de seu funcionamento, incluindo normas, ética e valores. Se a sociedade é doente, não é possível que a mídia não o seja (como ficou claro no episódio no qual uma capitã-do-mato disfarçada de jornalista de um programa policial charlatanesco humilha e abusa de um acusado de crime). A justificativa de que "é isso o que o público quer ver" funciona como um escapismo pseudodemocrático para as entradas no sensacionalismo e isso, sempre acaba em episódios traumáticos como o escândalo dos grampos de telefone do News of the World na cobertura do desaparecimento de Milly Dowler, ou em episódios nacionais como os da Escola Base, Bar Bodega e muitos outros incidentes causados por uma fraudulenta defesa do interesse público.
Vivemos um momento em que a mídia está se redesenhando em praticamente todos os aspectos: propriedade, práticas jornalísticas, escopo, alcance, responsabilidade, função, distribuição, legislação e ainda mais outros. Com cada novo avanço tecnológico, os desafios simplesmente se transformam e o problema resolvido gera um novo (o que reforça a tese de que a tecniologia não é boa, ruim nem neutra). Uma vez que o cenário do digital esteja completo e se enquadre definitivamente na sociedade (inclusivesob o ponto de vista legal), uma série de problemas deve aparecer, mas a discussão do interesse público tem tudo para ficar mais transparente e acessível. Claro, isso, desde que cada sociedade assim o queira.

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